segunda-feira, 31 de maio de 2010

Claramente confuso

Boa parte da terapia literária consiste em nos fazer pensar com clareza. Mesmo a confusão, claramente vista, passa a ser uma forma de se "desconfundir". Mesmo o pensamento confundente (como o das crianças) torna-se sinal e fonte de lucidez, se claramente confundente.

Por exemplo, quando perguntaram à minha filha: "Qual o seu nome?". E ela respondeu: "Meu nome é Lígia.com.br". Ela confundiu realidades. O virtual e o real. O nome e o endereço virtual.

Os escritores confundem ciência e ficção. O livro A máquina do tempo, de H. G. Wells, confunde imaginação e realidade, passado e futuro, possibilidade e impossibilidade.

Mas que sejam fusões e confusões esclarecedoras. Somos seres cheios de conflitos, dúvidas, ou, pior, cheios de vazio. Mas constatar tudo isso, ler sobre isso, e lidar com isso... nos faz sobrevoar, entrar na máquina da visão, atravessar os tempos, tomar decisões.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Terapia de choque

Ferréz (1975 - ) é terapia ferrada. Autor que não gosta de usar anestesia. Cronista de um tempo ruim (Selo do Povo, 2009) promove terapia de choque.

A crônica "Matemática de favela" começa assim:

"Eu fui fazer um pacto com o diabo, mas ele disse pra entrar na fila, número 432 era minha senha."

Outra, "Vida jovem em promoção", em que leio:

"Um dia a gente vai entender por que o nosso ensino é atrás de tantas grades, por que é mais barato sermos treinados segurando uma pistola e matando outro periférico do que estudando algo útil."

Ferréz nos diz que estamos ferrados. E eu penso que, mesmo os que se consideram a salvo, fora da periferia, fora da região ferrada, ferrados igualmente estão. Talvez até mais.

sábado, 22 de maio de 2010

Autoterapia

A terapia literária é eficaz na medida em que seja autoterapia. Durante a leitura, posso ter um auto-insight. Uma luz se desprende das páginas e recai sobre meus medos e ambições, esperanças e desilusões, euforias e humilhações, amores e solidões, problemas e intenções.

Lendo para valer, suspendem-se as lamentações. A leitura ativa a auto-observação. A autoanálise. Sem que eu o perceba...

terça-feira, 18 de maio de 2010

Baudrillard terapeuta

É terapia não entender direito. Quanto entendemos tudo... péssimo sinal! Não entender significa que estamos a caminho, que ainda vamos entender. Ou não. Que no mundo há mais beleza, inteligência e mistério do que podemos reunir em nossas mãos.

Não entender um autor é bom. Jean Baudrillard (1929-2007) incomoda, ultrapassa modas, corda que enforca e me puxa do buraco. Na Idade Média, o mundo se equilibrava entre Deus e o demônio. Na Idade Mídia, entre o excesso e a falta, o consumo e a denúncia, entre o medo e a anestesia.

Baudrillard, um novo Nietzsche. O pensador alemão foi dinamite no fim do século XIX. Sua força arrasou quarteirões. Baudrillard, dinamite no fim do século XX. Vamos ver os estragos que ainda fará. Os bons estragos.

São dele essas palavras: "O crime perfeito, o único, é o suicídio. Porque é o único e sem apelação, ao passo que o assassinato deve se repetir sempre. Porque realiza a confusão ideal do carrasco e da vítima."

Quem tiver ouvidos para entender... não entenda!

sábado, 15 de maio de 2010

Mais humano

O objetivo das terapias é nos tornar mais humanos, desendoidar-nos. A poesia é realista. Roland Barthes afirma que toda a literatura é realista porque sabe algo do ser humano. E algo que a ciência, tão pouco sutil, não consegue discernir.

Reencontrei hoje cedo o poema "Tarefa", de Geir Campos (1924-1999) . Foi terapia. É terapia. Porque me sinto humanizado. Porque a terapia não é egoísmo. Porque o egoísmo endoidece. Porque o nada endoidece. Porque o fruto amargo não é amargo à toa. Porque viver o esquema falso é nosso dia a dia, mas para não endoidecer de vez eu preciso saber que é um esquema falso. E avisar. E aqui está o poema, para quem quiser saborear:

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Terapia literária infantil

Também as crianças necessitam de terapia literária. Menos do que os adultos, mas necessitam. Para não ficarem "adulteradas"... como muitos de nós. Para desenvolverem imaginação e memória, como explicava o escritor João Ubaldo Ribeiro, ontem, em sua crônica No tempo do livro (O Estado de S.Paulo, 9 de maio):

"Os outros meninos do bairro podiam não morar num mar de livros como eu ou, ainda menos, ter um pai igual ao meu, mas não eram muito diferentes. Jogávamos bola (eu, hoje craque do passado, era fominha), brincávamos de médico com as meninas, fazíamos tudo o que as crianças daquela época podiam fazer, mas todo mundo gostava de ler, porque ler representava a liberdade e a fantasia. Comentávamos nossos heróis, organizávamos empréstimos de livros e gibis e mentíamos esplendidamente, em tertúlias em que acreditávamos nas histórias dos outros, contanto que acreditassem nas nossas – era tudo a verdade de nossas imaginações. A vã memória não distingue mais entre o que eu contava e os outros contavam, mas isso não tem importância. Todos nós, afinal, voávamos com Peter Pan e Sininho e alguns de nós namoraram com a Wendy. Não houve um que não tivesse enfrentado piratas, descido ao fundo do mar, ficado invulnerável a qualquer arma ou invisível à vontade, decifrado códigos secretos, falado todas as línguas e vencido todas as guerras e batalhas. Para isso, não tínhamos mais que os livros, não precisávamos de mais que eles."

sábado, 8 de maio de 2010

A razão literária

A literatura é mais filosófica do que a própria filosofia. Produzir e ler romances, contos, poemas... é uma forma de conhecer que envolve todo o nosso ser e não apenas o raciocínio. É uma forma de conhecer intensamente.

Não se trata apenas de conhecimento documental: a vida dos gregos em Homero, em Sófocles; a vida medieval em Chaucer, em Dante, a vida no século XIX brasileiro em Machado, em Alencar...

O conhecimento da realidade humana é condição essencial para o fazer literário e resultado prazeroso/doloroso da leitura. A relação entre a vida íntima e as aparências, os anseios humanos proibidos, o sonho iluminando e traindo são temas fundamentais da literatura, entre outros.

E aqui está a dimensão terapêutica da literatura. É claro que na literatura não encontraremos aquela sistematização, aquela organização lógica, como, em princípio, se espera de um tratado filosófico, de uma investigação psicológica. Esta fragilidade, no entanto, é a força da literatura.

Todas as nossas faculdades serão mobilizadas. Ao pensar literariamente, não pensamos apenas. A razão literária inclui as desrazões nossas. Gregor Samsa e Emma Bovary, Quixote, Macunaíma e Capitu, Ulisses e Pinóquio dramatizam nossas escolhas, concretizam nossos dilemas, causam surpresas, instalam medos, despertam esperanças, matam ilusões, provocam decisões, inspiram atitudes...

Podemos beber nas páginas da literatura algo que a ciência, a antropologia e a sociologia não podem nos oferecer. E estas outras instâncias do saber se beneficiam quando se abrem para ouvir o que os escritores e os poetas pensam. Contanto que saibamos como este pensamento é diferente do pensamento "normal"...

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A arte de viver

Conheci Viktor Salis numa palestra e tenho alguns livros seus. Ouvi-lo é uma terapia. Mestre da arte de viver, publicou sobre o belo, o nobre e o justo. Sua visão é arcaica, no sentido positivo e revitalizador da palavra.

Uma entrevista de Viktor Salis, como aperitivo:

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Um pouco mais de Erasmo

No final da vida, com seus 70 anos bem lidos, Erasmo de Rotterdam ficava repassando as cartas que recebera dos amigos, muitos deles mortos, e às vezes em circunstâncias violentas, como aconteceu com Thomas Morus (1478-1535).

Ler uma carta antiga pode ser boa terapia, repensar o passado, revisitar lugares, reconversar. Mistura de nostalgia e saudade (não são a mesma coisa!), e a chance de recompor o todo da vida — analisar e sintetizar a existência.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Mais Erasmo

Ler Erasmo e sobre Erasmo. O de Rotterdam. O que amava os livros. O escritor atento. Um tanto elitista. Avesso a conflitos. Harmonizador. Homem do limite. Entre a decadência do final da Idade Média e a impaciência do início do Renascimento. Como faz ver Stefan Zweig, um humanista que fracassou e triunfou.

Seu fracasso é terapêutico. Aprendemos que é impossível vencer com palavras a violência, a estultícia, o fanatismo. Erasmo perdeu o jogo. Sua liderança intelectual e espiritual foi substituída pela intolerância de Roma e pela intolerância de Lutero. Aprendamos com ele a perder o jogo.

Mas também é terapêutico o seu triunfo. Ao longo de 5 séculos, seus livros continuam vivos. Em especial o Elogio da loucura. Lá, Erasmo confronta nominalistas, tomistas, albertistas, ockamistas, escotistas... e o faz com a voz da loucura, uma forma inteligente de entender as sutilezas da estupidez humana, da nossa estupidez.

sábado, 1 de maio de 2010

Erasmo sem nenhum marasmo

Terapêutico é encontrar um autor com o qual nos identifiquemos, tanto no que diz respeito aos seus textos como no que se sabe de sua vida. Tenho antiga identificação com Erasmo de Rotterdam (1466-1536).

O meu livro Elogio da leitura é uma homenagem (um plágio criativo) ao seu Elogio da loucura. Sinto-me atraído por sua maneira tolerante de ser em meio às tensões intelectuais da época. Imagino ter um pouco do seu espírito. E algumas coincidências são interessantes. Ele foi revisor e tradutor. Eu também. Ele vivia a religião do livro. Eu também. Ele era professor para sobreviver. Eu também.

Erasmo nasceu em 1466, às vésperas de um 1500 cheio de fantásticas e terríveis mudanças; eu nasci em 1962, às vésperas de um 2000 igualmente fantástico e terrível. (Morrerei, então, em 2032, quando tiver os mesmos 70 anos de idade com que partiu desta vida o humanista Erasmo?)

Estou lendo Erasmo de Rotterdam: triunfo e tragédia de um humanista, de Stefan Zweig. Conta-nos Zweig que seu biografado era um ardente e fiel amante dos livros, entre outras razões porque eles não são barulhentos ou violentos.

De fato, a terapia literária é silenciosa. O silêncio livral (que nos livra de tantas prisões) acaba com nossos tédios e marasmos. Silêncio repleto de palavras...