terça-feira, 27 de abril de 2010

Toda leitura é leitura terapêutica?

Será terapêutica toda leitura que mexer na água parada, jogar fora copos rachados, arrumar a cama, trocar a roupa, tomar um bom banho, der um passeio, limpar gavetas, lavar a louça acumulada, tirar a poeira, enfim...

Como aquela frase que li, faz muito tempo, num muro...

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Pedofilia e bibliofilia

Se o Vaticano me perguntasse o que fazer para combater a pedofilia dentro da Igreja, eu responderia que poderia combater esse problema com a bibliofilia. Os bispos, se querem formar bem os padres de suas dioceses, têm de propiciar e exigir leitura, propor o estudo como prática real, o amor aos livros (também) como terapia.

É uma resposta ingênua, certamente. E quem sou eu para aconselhar uma instituição com 2 mil anos de atividade? Mas prefiro a ingenuidade às respostas evasivas, maliciosamente evasivas.

A leitura. A sabedoria. A reflexão. A brincadeira com as palavras. Um seminarista que esteja sempre com livros nas mãos não terá tempo para que sua cabeça se ocupe com o que não deve. Um padre com uma boa biblioteca poderá ter muitas noites de prazer literário.

Melhor ser possuído pelo amor aos livros do que pelo fogo da solidão, pela carência afetiva, pela vontade de dominar o mais fraco, de seduzir o menos atento.

Em vários textos e entrevistas, Bento XVI, mesmo quando ainda não era papa, dizia com clareza que "nem todos os que se dizem cristãos o são realmente". Isto supõe pensar num cristão autenticamente cristão, num cristão fiel ao compromisso batismal. Quanto aos sacerdotes pedófilos, podemos dizer algo semelhante: nem todos os que foram ordenados sacerdotes o são realmente.

Mas voltemos à bibliofilia como caminho terapêutico. Proponho que os seminaristas e os padres leiam, no mínimo, 8 horas por dia. E que leiam romance e poesia, contos e novelas, teatro e biografias, história e fantasia, não só teologia e filosofia.

E que leiam sobre o amor, sobre a dor, sobre os "impossíveis necessários" da vida, e que, leitores compulsivos, cresçam em humanidade, e pratiquem sua catarse na leitura, e busquem a santidade entre as páginas de um Rosa, de um Drummond, de um Shakespeare, de tantos autores que ofertaram generosamente o seu corpo e seu sangue à humanidade inteira.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O velho Ortega

Ler certos autores meio esquecidos é renovar-se, muitas vezes. O pensador espanhol Ortega y Gasset é um bom e velho desencadeador de ideias. Em seu Meditação da técnica, publicado na década de 1930 na Espanha, e na década de 1960 no Brasil, escreve sobre a vida humana como uma criação literária:

"A vida humana seria então em sua dimensão específica... uma obra de imaginação? Seria o homem uma espécie de romancista de si mesmo que forja a figura fantástica de um personagem com seu tipo irreal de ocupações e que para conseguir realizá-lo faz tudo o que faz, ou seja, é técnico?"

Meditar é um "me ditar", um "ditar-me", um ditar a mim mesmo, um falar consigo mesmo... um falar comigo mesmo. Pensar o viver como tarefa, o viver como uma narrativa a criar, frase a frase, verso a verso. E meditar é bem o que Ortega está fazendo nesta foto...

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Amare et amari

Em latim, amare et amari, amar e ser amado — esta é a "fórmula" da felicidade. Todas as terapias se resumem nisso. Portanto, o melhor remédio, o melhor tônico, a melhor vitamina, o melhor tratamento é deixar-se amar, e aprender a amar.

Literariamente, ler poesia de amor... e fazer poesia de amor:

QUANTO

Eu te quero tanto, você não sabe quanto,
para todos os quandos, em cada canto
do amor.

Eu te vejo pintada em todos os quadros,
eu me enquadro no círculo quadrado
do amor.

Eu te levo, no quarto, no quarteirão,
no quaterno, no quasar, no quamanho
do amor.

Eu te espero para além do enquanto,
encantado por teu encanto, quarado
de amor.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Frases terapêuticas

Pequenas doses verbais atuam terapeuticamente. Frases, aforismos, sentenças, máximas, ditos são capazes de evitar uma dor de cabeça, aliviar uma dor de fígado, ou de alma, cicatrizar feridas, baixar as altas pressões, tratar moléstias crônicas...

Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe...

É impossível desagradar a todos...

As aparências enganam a quem se engana...

Uma consciência limpa... jamais foi usada.

Podemos colecionar essas pastilhas (nem sempre açucaradas), e ir tomando quando necessário. E sempre é necessário...

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Medos e conhecimento

Medo azedo, que começa cedo e vai noite adentro, como se cura? Medo de ter medo, medo de não saber falar, cantar, pular, como se cura? Medo de penedo, de cair bêbedo, medo de bicharedo, como se cura? Medo de paralelepípedo, medo de segredo, medo de bruxedo, como se cura? Medo de dedo em riste, medo de folhedo triste, medo até de inofensivo chiste, como se cura?

Todo medo se cura quando se perde o medo do conhecimento — conhecer as horas e suas vírgulas, conhecer as notas musicais, conhecer o pulo do gato e o gosto do vinho, conhecer o tamanho da queda, conhecer as pedras do caminho, conhecer o medo que o prepotente tem de ter dor de dente como qualquer um pode ter um dia... conhecer, em suma, que tudo tem cura.

Até mesmo tem cura aquele medo profundo que há em todo mundo, o medo da coisa mais impura, da mais insana loucura, da mais escura tontura, da mais agoniante afogadura, de tudo o que é censura, baixura, queimadura, medo de tortura, tesoura abrindo a alma da nuca à cintura. Até mesmo tem cura esse medo de tamanha tremedura.

Medo se cura com conhecimento do medo, conhecimento do próprio abatimento, conhecimento do açoitamento, de cada momento da vida em seu doloroso andamento, conhecimento das artimanhas, das ciladas, de tudo o que se esconde no quase nada, conhecimento dos outros e, sobretudo, desse outro em que mora o medo, e esse outro sou eu mesmo.

E como se faz esse autoconhecimento?, todos perguntam, morrendo de medo. Não, não é no espelho que eu me conheço, nem pedindo aos outros opinião. É nos livros que eu leio, é neles que eu me conheço, é neles que perco toda a ilusão, tendo consciência da ciência que tenho, tendo uma visão sobre a visão que vejo, escrevendo sobre o que eu leio nas minhas leituras — e esse conhecimento cura!

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Terapia, livros e cristianismo

Ler é terapêutico. Qualquer livro pode ser instrumento e caminho para autoconhecimento, descoberta do mundo, revelações, desilusões, novas decisões.

Há um sem-número de livros inspirados pelo cristianismo, sejam ortodoxos, heréticos, superficiais, instigantes, equivocados, geniais... Milhares, centenas de milhares, milhões. Faz dois mil anos.

O cristianismo é terapêutico? Livros inspirados pela vida e pelas palavras daquele homem, daquele estranho e amável homem, daquele piedoso (e irreverente) judeu... podem ser livros terapêuticos.

Um deles é da autoria de um estranho e amável norte-americano, Brennan Manning. Chama-se O impostor que vive em mim (Mundo cristão: 2006).

Não é um livro comum porque é um livro de amor ao impostor. Odiar o impostor que há em mim pode levar-me ao suicídio. Amá-lo, pode levar-me a compreender outras coisas, coisas importantes sobre a realidade, sobre as pessoas, sobre o próprio fundamento de tudo...

quarta-feira, 7 de abril de 2010

O caracol

O primeiro aluno da classe, texto de Clarice Lispector, fala de um menino de nove anos extremamente ajuizado, solícito (empresta livros aos colegas da escola, ajuda-os a entender a matéria), cujo segredo é um caracol. Clarice repete que o segredo dele é um caracol, antes de finalmente contar o porquê...

"Seu segredo é um caracol. Do qual não esquece um instante. Seu segredo é um caracol que o sustenta. Ele o cria numa caixa de sapato com gentileza e cuidado. Com gentileza diariamente finca-lhe agulha e cordão. Com cuidado adia-lhe atentamente a morte. Seu segredo é um caracol criado com insônia e precisão." (em: Para não esquecer, 1978)

Todo mundo tem o seu caracol. Ou é caracol de alguém. Não é possível ser bom o tempo todo. Alguém tem de pagar pela minha bondade, pela minha correção, pela minha solicitude. Alguém deve ser torturado para que eu continue sendo tão ajuizado. Esta captação de Clarice é certeira. Atinge em cheio a nossa humana condição.

E a terapia literária é isso, um atingir em cheio, um desmascarar, um deixar à mostra os segredos que nos sustentam.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Osmose livral

Uma forma de terapia literária é expor-se aos livros, sentir seu calor, seus cheiros, deixar-se impregnar da sua presença. Há quem tome banho de sol, banho de lua, banho de espuma, banho de mel, por que não banho de papel? Papel livral.

Entrar numa biblioteca, numa livraria, num sebo, permitir que os livros espiem você, olhem você, observem seus movimentos. Quando você olha, eles fingem que são apenas objetos inertes.


Aprendemos por osmose, deixando que os livros entrem por nossa pele até as entranhas. O que os autores inscreveram ali emite suaves ondas de silêncio. E este silêncio penetra até os ossos, e dos ossos vai ao cerne.

Livros enfileirados, amontoados, empilhados, apertados, desconfiados uns, mimados outros, abusados, apoiados uns nos outros, chorosos, sorridentes, manhosos, prepotentes, todos eles são terapêuticos.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Leitura santa

Na Semana Santa, que leitura santa eu poderia fazer? Ou que livros santos, mesmo sendo igualmente pecadores, eu poderia ler?

Poemas santos, que falem do amor, e do ódio santo? Romances de paixão, que me crucifiquem? Textos santos, se é que existem tantos?

Certamente o Evangelho, que nunca será velho, renovadas cenas de dor e traição, fidelidade e tortura: "Tudo consumado!"

(La crucifixion blanche, de Marc Chagall)

Quinta santa, santa sexta, sábado santo, santo domingo, fazer terapia literária, o livro santo é amigo, é inimigo, mata e ressuscita.

Já sei: a via crucis do livro, carregá-lo dia e noite, sangrando nele para nele encontrar a salvação, o sentido, a palavra certeira: "Tenho sede!"