domingo, 31 de janeiro de 2010

A sanidade e suas loucuras

Há livros que não entendo. Leio, releio... e não entendo. É uma ótima lição não entender. Ajuda-me a entender que não posso entender tudo. Penso que isso é um começo de sabedoria.

Estou lendo e não estou entendendo o livro Louco para ser normal, de Adam Phillips (publicado pela Zahar em 2008). Comprei o livro por causa do título. E porque li, faz um bom tempo, outro livro deste autor: Monogamia (Cia. das Letras, 1997).

O título em inglês de Louco para ser normal é Going Sane. A ideia é que precisamos ser sãos, mentalmente sãos. Mas isso não é tão simples. "O são acredita que o medo é um grande educador, mas um mestre ruim; e que todo sofrimento é mau, mas que algum sofrimento é inevitável" (pág. 154).

Não sou suficientemente louco para ser normal? Ou sou tão normal que mal entendo o que é ser normal, com tudo o que há de loucura nisso? Só saberá fazer o elogio da sanidade aquele que fizer o elogio da loucura?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Símbolo possível

Um possível símbolo da terapia literária, este polvo, no traço de Franco Matticchio (1957-), desenhista italiano:

Um livro em cada mão para cada ocasião, leitura profunda, variada, mergulho atento nas entrelinhas, leitura para todos os males nos sete mares da palavra.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Leitura na veia


LEITURA NA VEIA

Leitura —
doença
crença
convalescença.

Leitura —
injeção
afirmação
tensão.

Leitura —
febre
timbre
vislumbre.

Leitura —
assédio
ódio
remédio.

Leitura —
dor
ardor
amor.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Instrumentalização do livro?



Garfield, na Folha de S.Paulo de hoje, usa o livro da maneira mais utilitarista possível. Mas não temos feito o mesmo, ao pensar numa terapia literária? Estamos abusando do livro, da literatura, ao exigir que nos curem de nossos males? Estamos instrumentalizando indevidamente uma fonte de água pura, cuja existência está aí para ser admirada e fotografada mais do que sorvida?

Entre Garfield, superficial, interesseiro, cínico, e uma concepção de leitura descarnada, desvinculada do humano, distante do meu cotidiano, prefiro testar os frutos do encontro, sempre imprevisível, entre palavra e consciência, entre textos e realidade. Com todos os riscos que isso implica.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Engajamento existencial

Há os desengajados, os sonhadores, os superficiais e os que têm projetos de vida. Esta é uma tipologia criada por William Damon (1944-), educador e pesquisador, cujo livro O que o jovem quer da vida? (Summus, 2009) serve para todos nós, seja qual for a nossa idade.

Os desengajados são os "nem-nem". Nem isso nem aquilo. Vivem no imediato. Buscam o prazer e fogem da dor.

Os sonhadores são pessoas sensíveis, cheias de boas intenções, mas não se comprometem. Gostariam de mudar o mundo, salvar a humanidade, ajudar os necessitados, mas não caem na realidade.

Os superficiais se engajam, mas seu horizonte é limitado. Querem vantagens pessoais. Se o projeto de vida começa a trazer desvantagens... mudam de caminho. São imaturos.

Os que têm projetos de vida entregam-se de corpo e alma a uma causa que os apaixona e que contribui de modo efetivo para melhorar o mundo ao seu redor. São persistentes, realistas, corajosos.

Uma terapia literária passa pelo autoconhecimento. Em termos de engajamento existencial, em qual dessas categorias eu me encontro?

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Leituras contra cegueira

Há várias categorias de cegueira. A dos olhos é apenas uma das mil e tantas que podem afligir o ser humano. As piores são as não percebidas por seus portadores. O pior cego é o que não quer ouvir. Ou o pior cego é o que afirma enxergar melhor do que todos.

Abrir as páginas de um livro pode ajudar a abrir os olhos da mente, ou da memória, ou do coração, ou da imaginação, ou do estômago...

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) associava (quem me conta é Michel Onfray, em seu O ventre dos filósofos, publicado pela Rocco em 1990) a alimentação ao comportamento. Dizia que comer muitas verduras torna os homens efeminados e que os grandes comedores de carne são grosseiros. Uma teoria insana. Em compensação, devemos a Rousseau o elogio ao leite materno, alimento natural por excelência.

Nós somos aquilo que comemos tal como somos aquilo que lemos?

sábado, 16 de janeiro de 2010

Livros para curar bibliocleptomania

Um bibliocleptômano está dominado pelo vício de furtar livros. Nos tempos de faculdade, no Rio, nos anos 80, conheci um estudante que afanava livros compulsivamente. Com muito critério. Levava das livrarias as melhores obras. Certa vez conseguiu sair de uma, carregando sob a jaqueta um exemplar de Crime e castigo, de Dostoievsky.


Que livros podem curar a bibliocleptomania? É como perguntar que bebida alcoólica curaria um alcoólatra. Ou poderia um piromaníaco livrar-se de sua obsessão se trabalhasse como bombeiro?

A bibliocleptomania é uma forma perversa de bibliofilia, é paixão doentia pelo livro. Doente ou não, quem furtar um livro pode receber pena de 1 a 4 anos de cadeia. Se o ladrãozinho tem a ficha limpa, poderá ser "perdoado", com a condição de reparar o dano causado e, por período de 2 a 4 anos, não entrar em livrarias, sebos, bibliotecas...

Talvez a única forma de ajudar o bibliocleptômano seja prendê-lo numa biblioteca, que ele passe o resto dos seus dias dentro dos limites da sua compulsão.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A felicidade entre livros

Estar entre livros. Ter uma biblioteca imensa e viver dentro dela. Ouvir as vozes dos livros. Uma biblioteca é um cemitério ao contrário. Os autores mortos estão vivos. Os autores vivos estão mais vivos, ali, livros vivos.



A felicidade aqui e agora e para além do tempo. Ideia e sonho de Jorge Luis Borges (1899-1986). O paraíso é estar cercado de livros, numa biblioteca infinita. O jovem desenhista argentino Gabriel Caprav (1983-) acertou em cheio. Envolvidos pelos livros, sentimos os efeitos benéficos, terapêuticos, de tudo aquilo que, pulsante, habita milhões de páginas.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Aquelas pílulas de otimismo

Quando comecei este blog, lembrei-me de um livro, Pílulas de otimismo, que havia em casa na década de 70. O autor era padre dominicano do Canadá, Marcel-Marie Desmarais (1908-1994), hoje esquecido, mas com um público considerável entre os católicos de então. E de modo particular no Brasil, onde esteve nos anos 40. Aprendeu a falar o português inclusive.

Numa época em que não havia leituras de autoajuda explícita, a editora Vozes se interessou pela proposta. Foi um sucesso. Em lugar de tranquilizantes, pílulas em forma de texto.

Tenho comigo a 9ª edição (1978) do segundo frasco, ou volume, brincadeira que o tradutor, D. Marcos Barbosa, faz no prefácio. Talvez hoje essas pílulas não tenham muita eficácia. Estamos mais céticos, menos inocentes.

Na página 71, encontro recomendações enérgicas do padre Desmarais para combater o pessimismo, o desânimo, a depressão:

"1. Absorva-se em seu trabalho, principalmente se é delicado e difícil. Estará desviando boa dose de atenção da ruminação das más lembranças.

"2. Em casos extremos, se estiver a seu alcance, mude de emprego, de ambiente, de paisagem. Sim, mude até de cidade. Você enfraquecerá, ou até mesmo destruirá, as associações de imagens que o afligem.

"3. Leia bastante, multiplique excursões e passeios, visite os amigos mais otimistas."

Padre Desmarais tentava desamarrar, desanuviar os corações e mentes dos seus contemporâneos. Entregava-lhes suas pílulas e antídotos.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Literatura, vida e saúde


Escrevendo sobre a literatura e a vida, Gilles Deleuze (1925-1995) via o escritor como "médico de si próprio e do mundo" (Crítica e clínica, pela editora 34, em 1997, pág. 13), mas um médico de saúde frágil, submetido às dores, aos sofrimentos humanos.

Há algo de doentio na literatura, como no escritor. Os seres que escrevem e as coisas escritas carregam um pouco, ou um muito, dos delírios, das fraquezas, dos desvios. Mas se trata de criar, de superar-se. Kafka é sinal de que o mundo está doente, mas quando Franz Kafka (1883-1924) retrata o mundo doente pode criar e difundir visão, visão revolucionária, terapêutica.

Escrever é, de certo modo, criar um idioma diferente dentro do idioma, e com esse idioma produzir visões e compreensões. Ler esses novos idiomas — o "kafkiano", o "drummondiano", o "rosiano", o "calviniano"... — requer novas alfabetizações, que ampliam a consciência, melhoram nosso organismo pensante, fortalecendo-nos perante doenças as mais traiçoeiras.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Livros sujos e maculados

O bibliófilo Richard de Bury (1287-1345), bispo e diplomata, escreveu em seu Philobiblon (Ateliê Editorial, 2004) que sua fama de amante dos livros era tão grande que, quando alguém lhe queria  presentear, nem pensava em dinheiro ou joias, mas em "caenulenti quaterni ac decrepiti codices". E o homem vibrava com esses "cadernos imundos e manuscritos decrépitos", onde encontrava beleza e sabedoria.

Mutatis mutandis, é o que acontece quando entramos em sebos e deparamos com livros sujos e maculados, mas nos quais ainda vibram a poesia, a verdade, a intuição, ou até mesmo tiradas de humor e manifestações de bom-senso, que também são coisas preciosas.

A passagem do tempo castiga os livros, sobretudo quando os que estão perto deles não cuidam, não valorizam aqueles bens. Mas para quem conhece o poder terapêutico da leitura é um lufada de ar puro, é um bálsamo, um lenitivo encontrar obras que, cheirando mal ou caindo aos pedaços, guardam ainda sinais de sensibilidade e inteligência.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Sentir-se amado e compreendido

Boa parte do sucesso de qualquer terapia está em que o impaciente paciente se sinta amado e compreendido. Não à toa Santo Agostinho (354-430) definiu felicidade como um estado em que a pessoa, amando os outros, se sente pelos outros amada (amare et amari).

É o que está implícito nas palavras que o escritor Alain de Botton (1969-) escreveu em seu twitter faz alguns dias: que ele encontra nos livros amados "um fragmento de mim nas palavras dos outros".

Toda vez que nos encontramos nos outros, sentimos que os outros nos compreendem, ou pelo menos estão aptos a nos compreenderem. Essa percepção desperta esperança, passamos a acreditar um pouco mais neste outro "impossível necessário" da condição humana: ser feliz.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Novos gostos

Ler livros que habitualmente não leríamos. Experimentar novos gostos. Novos gêneros. Não morro de amores por livros de ficção científica, embora tenha gostado de alguns contos de Asimov (1920-1992). Mas faz parte da terapia literária testar novas leituras.

Comecei a ler Neuromancer, de William Gibson (1948-). O efeito é de certo estranhamento, certo desagrado, e também certa familiaridade, porque o autor tem a ver com cinema contemporâneo, com referências tecnológicas que já fazem parte do nosso dia a dia.

O tratamento consiste em ler algo que não leríamos de modo espontâneo, sair do cercado, sair da sintaxe habitual, do vocabulário já conhecido, entrar em novas terras, beber de outras bebidas, degustar outros sabores, mesmo sob o risco dos dissabores, que também contribuem para um dos "impossíveis necessários" desta vida: a sabedoria.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Autoajuda que ajuda de fato

Há livros de autoajuda que mais ajudam o autor do que o leitor. Mas há também uma autoajuda altruísta, capaz de deflagrar, desencadear, "destampar" em nós possibilidades novas.

O livro A guerra da arte: supere os bloqueios e vença suas batalhas interiores de criatividade (Ediouro, 2005), de Steven Pressfield (1943-), nos ajuda de um modo verdadeiro, isto é, desiludindo.

A autoajuda que atrapalha cria ilusões, nos convence de que somos mais do que pensamos ser. A autoajuda que ajuda nos mostra a realidade, os fracassos reais, as limitações reais, o que somos, ainda que não gostemos de ser!

A autoajuda verdadeira tem medo das fórmulas mágicas, do apoio salvador, das vitórias bombásticas, das ideias brilhantes, dos truques, das espertezas. A arte de viver requer profissionalismo, no sentido de que precisamos nos distanciar um pouco desse "eu" nosso, para aprendermos a viver com todo o realismo possível, trabalhando para valer.

Trecho do livro que gosto de reler, e que me ajuda de fato, quando me sinto desanimado: "Eu realmente acredito que meu trabalho é essencial para a sobrevivência do planeta? Claro que não. Mas é tão importante para mim quanto pegar aquele rato o é para o abutre que vejo voando em círculos pela minha janela. Ele está faminto. Precisa de uma presa. Eu também. Termino meus afazeres domésticos. Já é hora. Faço minha oração e parto para a caçada." (pp. 81-82)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Ler e liberdade

Heloisa Seixas (1952-), em seu Uma ilha chamada livro (Galera Record, 2009), contos que giram em torno do ler, do escrever e do contar, há uma história sobre o presidiário que descobriu uma forma de libertar-se. Lendo.

A autora visitou o presidiário, José, náufrago da existência:

"Ele sorria, sereno, enquanto me contava sua história. José foi condenado a vinte anos de prisão. Bateu um desespero, precisava fazer alguma coisa, disse. E foi assim, por puro horror, que abriu um livro. Antes, lia mal, quase nada, juntava uma palavra a outra com dificuldade. E foi com dificuldade que começou, atravessando as primeiras páginas ainda como se nadasse. Não sei que livro foi, isto ele tampouco me contou. Mas sei que uma centelha brilhou e José foi em frente, atraído por aquele farol. Leu, leu e leu. Leu tanto que quis dividir a sensação com os outros, e passou a emprestar livros, a andar pelos corredores de cela em cela com um carrinho cheio deles. O homem-livro, o homem-biblioteca." (pág. 38)

O homem-livro será um homem livre, mesmo que não esteja atrás das grades. Ler um livro para se ver livre. Ver para além do livro para encontrar a liberdade de movimentos interior. Abrir um livro, abrir a porta da cela.

Leitura tudo cura

Leitura cura tudo. É bom para tudo, tudo ajuda, faz de tudo.

Trabalha todas as dimensões intelectuais. Exercita a atenção, a memória recente, a conexão entre fatos e experiências passadas, a linguagem, a imaginação, a capacidade de prever, a capacidade de interpretar, a intuição.

A leitura nos cura do dogmatismo e do ceticismo, do medo e da temeridade, do sentimentalismo e da insensibilidade, da falta de assunto e da verborragia, da indecisão e do fanatismo, da arrogância e da timidez.

Leitura faz bem para os músculos, para os ossos, para os olhos, para os ouvidos, para a queda de cabelo, para os rins, para os intestinos, para as juntas, para as costas, para as pernas, para os pés, para as mãos, para os dedos, para as unhas, para tudo.

Ler resolve problemas de visão, de solidão, de falta de recreação, de impotência, de sonolência, de implicância, de amargura, de cabeça dura, de alergia a fritura, de incultura, de postura, melhora a temperatura, aumenta a estatura, cola as fissuras, cura qualquer gastura, queima todas as gorduras.

Durante a leitura o leitor esquece as torturas da vida, recupera o amor à vida, dá vida a novas idéias, revive vidas passadas, prevê vidas futuras, comunica vida à vida mesma.

A cada leitura o leitor sai de si, reencontra-se, dá a volta ao mundo, mergulha oceanos, perfura a terra, entra em órbita, engole nuvens, desafia o Sol, abraça a lua... E tudo isso sem sair do lugar.

O leitor que lê bebe o leite, bebe o vinho, bebe o café do vizinho, bebe a cerveja, bebe de todos os rios, bebe sicuta, bebe uísque, bebe muito, bebe e cala, bebe e ouve, bebe tudo e continua sóbrio.

Leitura, sobretudo, é remédio para todos os males.

Cura dor de cotovelo, dor aguda, dor cansada, dor surda, dor crônica, dor romântica, dor poética, dor dramática, dor trágica, dor da mente, dor demente, dor da alma, dor de barriga, dor de cabeça, dor de dente, dor de peito, dor que nada respeita, dor difusa, dor confusa, dor fantasma, dor fina, dor grossa, dor incausada, dor ousada, dor para todos os gostos e lamentos.

Leitura cura tudo. E, claro, cura até mesmo o maior de todos os problemas. Cura a própria falta de leitura! Quem lê torna-se incuravelmente leitor.